quinta-feira, 24 de julho de 2014

Eutanásia

(dois irmãos conversam num canto afastado quarto. O pai deitado sobre a cama na outra extremidade)

Paulo: Você conseguiu o medicamento?

Túlio: Um amigo trouxe da Bélgica. Não estou seguro, precisamos conversar.

Paulo: Ele precisa disso, está sofrendo.

Túlio: Tem uma questão ética envolvida. Posso perder meu registro médico.

Paulo: Só nós sabemos disso. Daqui a pouco será um assunto entre mim e você. Pensa que o colocaremos para dormir.

Túlio: Ele nos colocava para dormir, lembra? Cobria um, depois o outro. Não sei se posso fazer isso com ele.

Paulo: Todos deveríamos ter o direito de escolher permanecer vivo ou não em uma condição terminal de grande sofrimento.

Túlio: As Leis existem para serem cumpridas.

Paulo: É claro. Se cada um quiser fazer o melhor para o mundo. Nós vamos fazer o melhor que podemos para nós.

Túlio: É uma questão mais profunda. É como se o estivéssemos privando de seu último suspiro.

Paulo: Você está parecendo a mamãe quando chegava da missa. Cara, você é médico. Sabe que há pouco para escolher.

Túlio: É, talvez eu esteja imerso em tradições conservadoras, sustentadas por pilares religiosos, mesmo sendo médico.

Paulo: Vamos em frente cara.

Pai: hummmm.

(os dois homens caminham em direção a cama e param ao lado do homem deitado)

Paulo: Oi pai, como está se sentindo?

(o pai faz sinal negativo com a cabeça)

(Paulo faz um sinal para Túlio iniciar o procedimento)

(Túlio passa a mão nos cabelos do pai)

Túlio: Pai está respirando melhor hoje?

Paulo: O Túlio vai aplicar a medicação para você se sentir melhor.

(Túlio injeta a agulha)

Túlio: Só uma picadinha. Agora o adesivo para segurar. Pronto.

(Túlio posiciona o frasco do medicamento na seringa)

(Pai com voz baixa, faz esforço para falar)

Pai: Paulo, você poderia ir ver minhas plantas amanhã? Elas estão sem cuidados. Precisa aguá-las. No armário da oficina tem uma lata com adubo. Revigore-as para mim.

(Túlio para o procedimento)

Tulio: Você sempre cuidou muito bem do jardim. Já ouvi dizer que tem gente que nasce com a “mão boa” para plantar.

Pai: Cof, cof, cof.

(Paulo coloca a mão sobre os ombros do pai e olha para Túlio)

Paulo: Calma pai. Fica tranquilo.

Pai: Talvez seja necessário podar a sempre-viva, senão ela morre.

(o pai abre um sorriso)

Pai: Cof, cof, cof.

Túlio: Calma Sr. Sergio. Vamos continuar com essa medicação para você melhorar.

(Túlio retoma o procedimento, apertando a ampola contra a seringa)

 Pai: Túlio?

(Túlio não injeta o líquido da ampola e olha para o pai)

Pai: Esta noite, sonhei com um filme que vi há muito tempo atrás.

Túlio: Qual filme pai?

Pai: Contos da Lua Vaga. É a história de dois oleiros que querem coisas diferentes da vida. E também um filme de mulheres fortes.

(Paulo se emociona e chora. Túlio olha para Paulo)

Túlio: Agora quero assistir, fiquei curioso.

(Túlio larga o medicamento)

Pai: São cenas que parecem quadros, quando olhamos isoladamente.

Paulo: Havia esquecido o quanto você gosta de cinema.

(O pai se emociona)

Paulo: Podemos rever esse filme se você quiser.

Pai: A vida é tão curta para se rever todos os filmes que se quer.

Túlio: Pai você...

(ambos percebem o homem morto e se abraçam)

 

 

Fim

 

 

 

Terceiro dia da Oficina de Roteiro, com Renata Mizrahi, CAL/SESI

Exercício: A quer algo de B. C impede B de dar a A. Resolvido por A ou C. A e B são humanos, C pode ser objeto.
 

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