quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O coração do homem-bomba



 

      Na aldeia onde Hassan nasceu, não há crianças jogando bola, nem animais soltos nos quintais. No tempo em que era um menino tudo era difícil, não havia brinquedos, a comida era simples, mas havia belos rituais e festas em que as moças jovens dançavam discretamente, envoltas em tecidos coloridos. Podia-se correr livremente pelos campos e rolar pela colina empoeirada, esmagando as flores modestas daquelas encostas. 
      Na aldeia tinha uma bola de futebol, velha e remendada, amarelada da poeira baladi¹, que era disputada pé a pé, chute a chute, por todos os meninos daquele lugar. Esta bola, o futebol daqueles dias e as danças das moças de lá, acompanharam as lembranças de Hassan talvez por toda a sua vida. Nos tempos sem paz, quando já não se podia caminhar livremente nos campos minados, e não havia comida suficiente, nem rituais, nem festas e véus coloridos, era nestas lembranças que ele buscava acalanto.
     Num dia de vento gelado e sol brilhante, quando Hassan voltou do pasto com as cabras, encontrou sua aldeia devastada, a escola queimada e os campos incendiados. Ele correu para casa, no trajeto encontrou muitos fugindo, outros choravam sentados pelo caminho, mas em casa não encontrou ninguém, já imaginava que seu pai era morto, mas onde estaria sua mãe, a irmã e as outras famílias? 
    O grito de Hassan ecoou pelos quatro cantos, da sua boca urrava um monstro sombrio, que adormecido acordava, que saltavam as veias de sua garganta, só ele não podia se ouvir. Ele, com seu monstro de novo adormecido, passou a noite estirado no quintal, imóvel, observando as estrelas daquele céu baladi. Do seu corpo, o único movimento era o das lágrimas, que lhe alagavam a retina e transbordavam pela face.
   A vida precisava de um sentido, viver na aldeia sem sua família, sem comida, seria impossível, além do mais, ele sabia que os campos dali eram agora perigosos, não se podia caminhar livremente na poeira da colina. Dias depois, faminto e desolado, ainda sem entender o que se passou na aldeia, e sem notícias de sua mãe, Hassan foi recolhido em um caminhão, cheio de meninos, que o levou junto com os outros para um madraçal longe dali.
  Os meninos estudaram, tiveram um treinamento rigoroso, aprenderam a guerrear e principalmente a se destituir de suas vidas, por uma causa dita soberana, mas distante e oposta à simplicidade de suas aldeias. Alguns se rebelaram contra os homens que destruíram suas famílias e crenças, outros se resignaram, mas Hassan, apenas se tornou indiferente. Sua única indignação era não poder respeitar as tradições de seus pais e avós, não que fosse religioso, ao contrário, alimentou duras críticas às religiões, mas porque aqueles costumes lhe traziam boas lembranças de casa. 
   Anos depois, em uma sexta-feira que antecedia o Ramadã, os jovens e meninos reunidos no pátio, esperavam o momento da oração diária, quando algo inusitado aconteceu. No altar improvisado, o líder anunciou que algo extraordinário sucederia, era chegada a hora de retribuir a todo o bem feito àqueles meninos outrora abandonados e que agora, eram dignos de servir à grande causa, e ainda teriam em dobro todas as riquezas desse mundo, num outro diferente deste.
   Após sua fala exaltada, o líder ergueu os braços e mandou que trouxessem o saco com os nomes, haveria um sorteio.  Perplexo, Hassan teve um presságio, suas mãos suaram e seu coração disparou, por um momento os sentidos lhe falharam, e uma sede absurda ressecou sua garganta e seus lábios. Ele era um jovem crítico, sabia o que aquilo significava e apesar da indiferença com que viveu durante todos esses anos, não compartilhava daqueles anseios. 
  Ele não sabia o que o fazer de uma vida sem sentido, mas sabia que aquilo que se propunha ele não queria. Sentia-se incapaz de reproduzir em um bairro movimentado da cidade, o mesmo ato que anos atrás praticaram na sua aldeia. Ele ouvia os batimentos do seu coração e com as pernas bambas, teve medo do seu azar.O líder, com braço esquerdo para trás e postura de general, enfiou sua mão direita no saco, que parecia pequeno para ela. Com o entusiasmo de apresentador de show de calouros puxou um papelzinho, anunciando em seguida: “O sorteado foi Has...san, da província do Sul”. 
  Os olhos de Hassan lacrimaram, mas ele tinha que ser forte, talvez, esse fosse o sentido da vida que lhe foi poupada quando menino, e era chegada a hora dele a entregar definitivamente. Imediatamente os guardas o acompanharam até uma cela em que ele permaneceria isolado até o grande dia.  Ali lhe seriam transmitidas todas as orientações sobre a ação devasta. 

 Um sentimento misto de resignação e desespero o dominou, mas os preparativos teriam que começar. Tudo foi minuciosamente planejado, ele iria com o “presente” até a pequena praça da Avenida Central, conversaria com o pipoqueiro, compraria uma pipoca, e ao receber a mensagem no celular, caminharia para ala oposta. No momento em que a última criança descesse do microônibus, ele detonaria, parecia fácil. Durante o período de isolamento nada lhe foi dito, mas sabia que entre as crianças, havia uma em especial.
  Uma semana depois, próxima a hora do almoço ele chegou na praça com um embrulho nas mãos. Tinha no tornozelo uma fita pela qual seus passos eram monitorados e na cintura, um discreto emaranhado de fios que ele detonaria na sequência. Era um caminho sem volta.
 O coração de Hassan palpitava forte e ele achou que podia ouvi-lo, assustado, olhou para os lados e suspeitou que os outros também o pudessem escutar, nesse momento o pavor que comprimia seu estômago se transformou em uma vergonha avassaladora, que invadiu seu rosto e sua alma. Sentia medo, mal podia controlar a tremedeira de suas mãos e os enjôos de pavor.
   Na confusão da praça ele observava uma cesta de fruta que parecia andar sozinha. A mulher que a levava na cabeça não era forte, a cesta quase a escondia. Ele viu quando um menino ao se aproximar pelas costas puxou uma a fruta e saiu correndo. A mulher se desequilibrou e algumas maçãs caíram, a cena das frutas coloridas rolando pelo chão chamou–lhe a atenção. Seus olhos observavam as mãos delicadas da vendedora de frutas, que de joelhos tentava recuperar as maçãs entre os passos da multidão. Seus olhos percorreram o corpo dela e ele sentiu um arrepio, algo diferente de tudo que conhecia. Seu olhar passou pelos seios, pescoço, boca, e quando olhou nos olhos, surpreendeu-se com o olhar dela.
   Os segundos em que os olhares se cruzaram foram para ele uma eternidade, como se o tempo e tudo ao redor parasse. Os olhos de mel, amendoados e cílios longos fizeram com que ele, de novo, sentisse o coração palpitar. Desejou que um vento forte arrancasse o véu para que ele pudesse ver os cabelos dela. Ele se deu conta da vida de privações que levava e que não conhecia os sentimentos e sensações de um jovem. Logo recebeu uma mensagem no celular, instantaneamente o pavor voltou a castigar seu corpo. 
   Ele começou a caminhar lentamente para a ala oposta à praça, passou pelo microônibus e pelas crianças, cruzou a rua, caminhou uns quinhentos metros, retirou a tornozeleira e jogou na lata de lixo, entrou rapidamente em uma viela, depois em outra, e outra, pensando que já estariam atrás dele. De longe, avistou uma vala. Afundou os pés no esgoto, que lhe alcançou o tornozelo, deixou o presente na lama putrefata junto com os fiozinhos que estavam na cintura. Assegurou que não havia ninguém por perto, e da esquina, assistiu a explosão. Quando escureceu, Hassan saiu debaixo da montanha de restos de vegetais e caixotes da feira e fugiu em direção ao Sul.
    Em um dia de céu limpo e noite estrelada, Hassan chegou às ruínas da casa onde viveu com a família. A aldeia não existia mais, mas os campos e as flores delicadas ainda nasciam por ali e de longe era possível avistar as colinas de poeira amarela. À noite estirado no quintal, imóvel, observando as estrelas, lembrou dos meninos do madraçal e chorou lágrimas de esperança. 
    Na imagem vertiginosa dos sonhos, os meninos do madraçal jogavam com a velha bola nos campos empoeirados, repletos de fragmentos esvoaçantes de dente-de-leão, soprados por qualquer criança. Os meninos da aldeia rolavam pelas colinas amarelas, esmagando as flores pequenas. Hassan acordou eufórico. Quatro meses depois ele conseguiu cruzar a fronteira para os países do Leste. Foi ser livre, dente-de-leão soprado pelo vento. 


 ...




para os meninos  de todos os sertões...



¹ Baladi  em árabe significa "meu país, minha terra natal”
² Foto dos meninos afegãos jogando bola (Maurício Lima/AFP; foto do pássaro do arquivo pessoal.

4 comentários:

  1. Muito bonito. Apura cada vez mais estilo de narrativa. Quem sabe não deságua num livro?

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  2. Adorei. Parabéns. Ivina

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  3. Excelente texto, cheio de mensagens.
    A riqueza de uma frase, de um provérbio, de um conto, de um artigo ou de um livro está sempre relacionada às quantidades de “chaves” que podemos aplicar para extrairmos suas “vitaminas” mais profundas.
    Se aplicarmos em seu texto uma “chave” que represente nosso cotidiano, por exemplo, vejo que nossas vidas percorrem o mesmo ciclo que Hassan, pois são aqueles que retiram nossos princípios, os mesmos que nos sequestram com um discurso de socorro, quando na verdade estão nos treinando para reproduzir ou multiplicar o mal para o mundo.
    Quando damos por nós, se conseguirmos, sentimos que não é o caminho, não é esta a nossa missão, contudo, poucos são aqueles que conseguem se livrar da “bomba” que nos tornamos e retornar ao homem original, que veio com a missão de evoluir sua alma e espírito, mas se vendeu ou não teve força para vencer a grande ilusão.
    Que todos tenham a força e o discernimento espiritual de Hassan e saibamos enxergar a VERDADE a tempo.
    Parabéns!
    Obrigado pela viagem.
    Marcos Frederico.

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    1. Marcos, que bom que tirou boas mensagens e uma interpretação legal do texto. Obrigada!

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