sábado, 27 de outubro de 2012

Museu do Índio do Maracanã



O casarão que durante a década de 1940 abrigou o museu do índio está em vias de ser destruído pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. O espaço do casarão ampliaria a rota de saída do estádio do Maracanã e a iniciativa faz parte do conjunto obras previstas na reforma para a Copa do Mundo de 2014. Foi anunciado essa semana, que o governo do Estado entregará o Maracanã para concessão a despeito de toda a nossa grana injetada ali. Na certa, a concessionária vencedora tem preocupações maiores do que um velho casarão majestoso, mas caindo aos pedaços. 






O casarão construído em 1862 foi a sede do centro de operações do Projeto Rondon, ali o próprio Marechal recebia os índios que chegavam de toda a parte do país. Pelas ruínas é possível contemplar sua beleza, consta que por isso recebeu um prêmio da Unesco por considerá-lo um dos prédios mais lindos do Rio.
Criado como um revés político ao massacre de índios no início do século XIX, de repercussão internacional negativa, foi durante muito tempo símbolo da luta por melhores condições para esta população. Presenciou importantes acontecimentos, a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois a FUNAI, e foi o palco onde atuaram personalidades como Darcy Ribeiro e outros tantos. Entretanto, o mais comovente é saber que área do imóvel abrigou a tribo Maracanã  e que por isso é considerada um “solo sagrado” pelo povo indígena, conforme relata a jornalista Cecília Costa do Globo (Rio, 20/10/12). Foi a tribo que deu nome ao estádio e ao rio que passa por ali. O prédio do museu acompanhou, sob os olhares dos índios que por ali sempre estiveram, jogos consagrados do estádio do Maracanã.
 Hoje, no museu em ruínas, setenta pessoas, índios de várias etnias, que convivem juntos no local, vão resistir à demolição prevista pelo governo. Os índios estão há seis anos vivendo nas ruínas e a transformaram em um centro cultural. Agora, se impedirem a demolição, vão lutar para transformá-la em um centro turístico.








Este é um alerta para salvar este patrimônio público que carrega registros da nossa história e cultura. Em defesa do prédio do museu e para contribuir com os índios que estão residindo ali, fotografamos e filmamos para divulgação o depoimento do índio Urutau Guajajara, que mostrou o prédio e falou da festa do moqueado, ou festa da menina moça, que é o rito que marca a passagem à puberdade. Eles vão reproduzir o ritual no prédio do museu, pela primeira vez fora da tribo. Será aberto ao público nos dias 27 e 28 de outubro.



por  Regina Fernandes e Eduardo G. M. de Castro 
Fotografias e vídeo: Eduardo G. M. de Castro 


Foto de Daniel Marenco - 16.dez.2013/Folhapress

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Florbela Espanca



Quando cheguei a Évora em Portugal, procurava muitas coisas: Cromeleque dos Almendres, ruínas romanas como o lindo templo de Diana, cidade medieval cercada por muralha, construções mouriscas herdadas dos árabes, vinhos do Alentejo, comidas do lugar, mas confesso que me encantava ir à cidade de Florbela Espanca. Florbela foi uma poetisa portuguesa que nasceu em 1894 em Vila Viçosa, lugarejo pertencente à Évora, uma mulher apaixonada, que buscava um lugar no mundo, pequeno demais para ela. 

  Florbela Espanca

Como bem descrito, “sua vida, de apenas trinta e seis anos, foi plena, embora tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos que ela soube transformar em poesia”. Uma mulher especial que Fernando Pessoa chamou de “alma sonhadora, irmã gêmea da minha...”.


À memória de Florbela Espanca    
(encontrado no espólio de Fernando Pessoa)

Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gêmea da minha!
Tua alma, assim como a minha,
Rasgando as nuvens pairava
Por cima dos outros,
À procura de mundos novos,
Mais belos, mais perfeitos, mais felizes.

Criatura estranha, espírito irriquieto,
Cheio de ansiedade,
Assim como eu criavas mundos novos,
Lindos como os teus sonhos,
E vivias neles, vivias sonhando como eu.
Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gêmea da minha!
Já que em vida não tinhas descanso,
Se existe a paz na sepultura:
A paz seja contigo!

Quando cheguei ao hotel a primeira coisa que fiz foi perguntar ao recepcionista sobre Florbela Espanca. Ele baixou os olhos e disse, “ela se matou,  eu conhecia muito seu primo, que se matou também...”. Fiquei imóvel e sem ação, porque não esperava. Sabia da vida de Florbela, já havia lido muito sobre ela, mas não a procurei por causa do suicídio, mas pela sua obra, aliás, pelo contrário, por sua vida incondicional, por mais curta que tenha sido, por sua “alma de luto sempre incompreendida”.

Eu                
 (Florbela Espanca)

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino, amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!



Em novembro de 2009, eu ouvi o próprio Xangai cantando no Teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro o poema Eu, de Florbela Espanca, que ele musicou. Por muito tempo busquei esta música, mas sem encontrá-la. Esta semana, motivada pelo filme Florbela exibido no Festival Internacional de Cinema do Rio voltei a procurá-la e encontrei esta versão da Banda Sertanília.

Florbela Espanca entrou na minha vida pela primeira vez quando ouvi a música Fumo que é um poema dela musicado pelo Fagner. As diversas faces de Florbela são um pouco de cada mulher, nós todas estamos nela. Sua poesia descreve de algum modo todos os nossos sentimentos, o nosso íntimo, mas de fato, isso fica mais evidenciado nas mulheres profundamente apaixonadas. Não só mulheres, mas qualquer pessoa que vive ou deseja viver e amar intensamente.

Fumo           
(Florbela Espanca)

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outono: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o vosso sonho!  Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...


 
O filme Florbela, com direção de Vicente Alves do Ó, ou a história que ele conta, não se aprofunda ou dá detalhes da vida literária da poetisa, entendo inclusive como equivocada a ideia que passa da boa aceitação de sua obra na época. Também não é exatamente uma biografia completa, mas o enfoque em um determinado momento, uma parte da sua história contada de uma maneira bonita em uma bela fotografia.


 



 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Rio Antigo


Antes que as seis badaladas do relógio anunciassem o dia novo, Joaquim Maria já olhava para o teto esperando o prenúncio de mais um dia de vida. Observava, com a vista preguiçosa, uma fresta de luz no canto esquerdo do telhado. Levantou-se e da sacada contemplou as tonalidades púrpuras que pairavam sobre a baía, anunciando timidamente um dia ensolarado. Sentiu adentrando pelas narinas a brisa ainda fresca da madrugada. O movimento perfeito e labiríntico do ar fresco preenchendo as narinas, a faringe, dilatando os condutos até o pulmão, como uma essência de menta, deu-lhe a certeza de estar vivo.
Utilizou a água do gomil para se lavar e pôs-se elegante, para cumprir seu ofício de homem das letras, frequentador de bares e recintos refinados da cidade, como bom aspirante deveria estar preparado para qualquer eventualidade que questionasse sua posição de membro da nobre sociedade carioca. Sacou do mogno um terno tão escuro quanto, em uma escolha minuciosa entre os iguais. Na chapelaria posicionada ao lado da porta, como de costume, deteve-se no último rito, o momento que antecede a saída é adequado para não esquecer o chapéu escolhido, apropriado ao tempo e as convenções.
Desceu a estreita escada do velho casarão na Rua dos Andradas e como um cão que segue determinado e sem destino, seguiu em direção a Avenida Rio Branco, de certo a opção menos escaldante em meados de janeiro era espreitar um bonde que o levasse ao centro. Contrariando a racionalidade decidiu pela caminhada e se rendeu ao desconforto da testa molhada sob o chapéu. Gostava de observar as pessoas que davam movimento às ruas, roubava delas partes desprezíveis de seus cotidianos que transformava em histórias meticulosas e divertia seus companheiros de idéias nos saraus regados a dry martini.
O cotidiano da sociedade conhecia bem, era um bom observador dos ensaios involuntários que a vida aplicava aos mais variados cidadãos, da côrte às estivas sujas do cais. A vida era sim ingrata, ele bem sabia disso, mulato que era, principalmente com os homens pretos que com suas mais desqualificadas funções mantinham a grande cidade funcionando. Contudo, acreditava que as novas ideias abolicionistas eram tolices infundamentadas que nada adiantariam aos pretos pobres que não vivem de vida própria. Sabia que precisariam de muito mais do que a revolução pretendia oferecer e arriscava os atolar ainda mais na lama periférica da sociedade. Sobre si pensou, teve sorte, as letras o salvara.

 Biblioteca Nacional
Poderia avançar mais rapidamente pela avenida, mas optou por atravessar a Rua do Ouvidor, nesta sempre havia moças seduzidas por vitrines das chapelarias elegantes, por outro lado sentia-se ele seduzido pelos olhares fixos aos chapéus. Sabia apreciar as damas distintas da côrte com firmes penteados presos por cinamomos e luvas de renda, mas perdia-se profundamente nas madeixas frouxas de mulheres com olhares sedutoramente determinados. A estas preferia, via em seus olhares o da própria mãe, que o arrastava pelas mãos por estas ruas quando menino, e usava de sua sedutora determinação para garantir seus estudos. Os olhares invadiam sua alma como a onda brava do mar ressacado, que se lança sobre a areia e invade o passeio público, ao mesmo tempo que agride, suaviza. Não queria uma mulher para si, pois em seus olhares as tinha todas.
Já dava pelas horas do chá, seu instinto de humano condicionado pelas essências dos grãos torrados de café, combinados com o aroma de baunilha das massas, o guiava involuntariamente para a confeitaria, já sabia onde sentaria, o que beberia, quem encontraria, previa cada acontecimento, da abordagem do garçom a chegada de cada distinto companheiro, um a um, e conhecia que ao deitar da noite, como de praxe, a mesa estaria farta em vinho e poesia.  Acendeu o cachimbo e inebriado pela fumaça adocicada observou sua imagem, um tanto disforme no espelho do lugar, pensou na cidade escaldada pelo verão, que amava e conhecia como ninguém, pensou nas letras, nos amores, nos infortúnios, na vida que nunca teve.


...


Numa manhã ensolarada ele a convidou para uma viagem longa a lugares próximos. Que tal um passeio pelo Centro do Rio? Ela que anda por essas ruas todos os dias nas idas e vindas do trabalho achou estranho, mas concordou em se aventurar nos poucos dias de folga que restavam.
Aprenderam em suas viagens a dismiuçar os detalhes de cidades de outros mares, mas até então tinham ignorado as relíquias pequenas do Rio de Janeiro, ofuscadas pela imensidão do mar e de monumentos como o Redentor. Longe, aprenderam que alguns encantos precisam de olhares que transcendem a visão do cotidiano. Sairam em busca de alguma coisa do Rio antigo, sem saber exatamente o quê. 

 Rua do Centro do Rio

Planejaram um roteiro para circular por alguns prédios e pontos históricos e munidos de máquina fotográfica, lápis e papel para pequenas anotações seguiram para seu destino. Ao saírem do metrô, na estação Central, contornaram o Campo de Santana, reduto de escravos nos séculos XVIII e XIX, e dali, avistaram os primeiros casarões. Naquele momento sentiram o Sol forte como um portal que os transportou para uma dimensão secular, estavam enfim, no século XIX. 

 Casarões próximos ao Castelo
Pararam na Rua dos Andradas diante do casarão onde morou Machado de Assis e contemplaram a fachada deteriorada pelo tempo e o descaso. A aba do chapéu permitia que ela olhasse para cima sem ter a visão embaçada pela claridade, e contemplasse o casarão como em outra época. Ainda pensavam em visitar outras célebres moradas e pontos históricos da cidade, tinham portanto, muita caminhada pela frente, mas antes de sair, ela imaginou o escritor naquela sacada, em uma manhã distante, contemplando um sol parecido com aquele que a esquentava, e pensando em Helena. Por outros casarões ladeira acima, ela mesma imaginava Helena, Estela, Virgínia, Maria Capitolina e outras tantas lindas mulheres que saiam das páginas imortais, em seus trajes elegantes, para vagar entre uma e outra loja de tecido, armarinhos e admirar fixamente as vitrines dos chapéus. 

  Casarões próximo ao Arco dos Teles
Na tarde, na altura da Rua Sete de Setembro, os dois apreciaram a arquitetura de uma confeitaria e pararam para um café. A decoração centenária  com espelhos emoldurados e chão ladrilhado dava requinte ao recinto rodeado de mesas, que dada a hora, estavam postas para o chá. Ela percebeu que cada mesa, umas ocupadas, outras não, tinha gravada na lateral o nome de uma personalidade, na maioria escritores e poetas, na certa uma homenagem do lugar aos seus antigos frequentadores. Observando o ambiente e as pessoas naquele momento prazeroso, chamou-lhe a atenção o senhor que ocupava a mesa gravada de Machado de Assis, que com ares e trajes diferentes, vestindo um primoroso chapéu, sacou e acendeu um cachimbo. O aroma adocicado lembrou um incenso achocolatado, e ela pensou na beleza da cena, nas coincidências da vida,  na nova legislação que proibe o fumo  em lugares públicos.

 Escola de Cinema Darcy Ribeiro
 
...

* Fotos: Centro Velho do Rio (site)
** Prometo em breve inserir fotos minhas.
*** A personagem foi apenas inspirada em Machado de Assis.