terça-feira, 11 de setembro de 2012

As Mil e Uma Noites


Durante a minha infância, na nossa casa não tinha livros. Com o orçamento apertado não era possível tê-los, mas tinha uma televisão Philips em preto-e-branco de 21 polegadas, daquelas estilo caixotão, revestida com uma espécie de fórmica que lembrava madeira. Era nesta TV que eu gastava boas horas do dia assistindo os filmes da Sessão da Tarde. Através deles conheci, entre outras, as histórias das Mil e uma Noites. 


Era comuns filmes com histórias do Ali Babá, meio Indiana Jones, meio anti-herói, que sempre se safava dos facões, e lógico, terminava conquistando a princesa odalisca que escondia o rosto sob tecidos de seda. Desta forma os costumes tão diferentes daquele povo chegavam até mim.

Eu mergulhava naquelas histórias tão profundamente, que era como se eu fizesse parte daquele mundo fantasioso cheio de personagens interessantes e diferentes de gente comum. E desejava ser uma daquelas princesas que terminavam beijando o anti-herói, e me imaginava caminhando sob panos esvoaçantes ao som de Vivaldi, como no comercial do sabonete Vinólia, em uma “sensível diferença para mulheres especiais...”, em um delírio lúdico infantil sem fim!

Meus devaneios envolvendo Ali Babá, Aladin, suas princesas odaliscas, homens de turbantes, palácios suntuosos e paisagem desértica, faziam parte de um mundo particular, que eu vivia quase sempre sozinha e que não existia na presença de outro alguém.

Perto da nossa casa, na Grande São Paulo, morava um “turco” do Líbano que sempre conversava com meu pai. Para nós qualquer pessoa da “arábia” era “turco”. Um dia ele nos trouxe alguns exemplares de um pão diferente, redondo e vazio, que nós apetitosamente, comemos com ovo frito e café-com-leite que minha mãe preparara em um saudoso domingo de manhã. Ainda não havia para mim babaganush, pasta de grão de bico, nem nada que combinasse mais com pão sírio.

O “turco” do Líbano tinha uma neta da minha idade, com o nome de Hamel, com quem brinquei algumas vezes. Hamel, embora bem pequena, já tinha ido para a “arábia”, poderia ter me contado, então, sobre as meninas de lá, seus véus, suas danças, seus costumes, suas dificuldades e anseios, mas a criança que eu era ainda não tinha este entendimento e a vontade de saber das coisas de lá. 
 
Ás vezes penso no porque daquela família estar ali, mergulhada numa cultura tão diferente e distante da sua terra natal. Já imaginei que estariam em exílio por causa da Guerra do Líbano de 1982 quando tropas israelenses tomaram Beirute, ou pelos confrontos seguintes entre cristãos e mulçumanos. Talvez, quem sabe, um exílio pelo empenho na campanha presidencial do jovem eleito Bashir Gemayel que morreu prematuramente.
Partimos dali. Nunca mais vi o “turco" do Líbano, nem a pequena Hamel, que de lembrança não tenho quase nenhuma, mas gosto de a imaginar com os traços das meninas lindas do Afeganistão, que não são árabes, mas carregam o semblante, bonito, moreno, com olhos expressivos, comuns nas mulheres do Oriente Médio. Na verdade, o árabe, muito mais que detentor de uma língua, é o cidadão envolto em tradições, costumes e estilo sócio-cultural que definem com exatidão sua região. Hoje eu sei que nosso amigo libanês era um árabe naquela imensidão de São Paulo.

Os preâmbulos da adolescência também me levaram para um outro mundo, diferente daquele. O Oriente Médio que voltei a “frequentar” anos mais tarde, já não tinha a leveza dos tecidos árabes, mas a densidade crua do petróleo que jorrava dos poços do Iraque durante a Guerra do Golfo.


Com a infância se esvaindo, em um mundo cada vez mais globalizado, ficou difícil enxergar as coisas bonitas daquela parte do mundo. Durante um bom tempo a associação era quase imediata a armas de destruição em massa, fundamentalismo religioso, política ditatorial e terrorismo.


Em minhas recentes andanças pelo sul da Espanha me reencontrei com as belezas do mundo árabe. Talvez, sem aquele início com a Sessão da Tarde, o reencontro não seria tão perfeito e harmonioso. De forma antagônica os detalhes delicados e a graciosidade da arquitetura apontam uma cultura forte, que não se rendeu nem à soberania dos reis católicos. Os árabes foram expulsos da Península Ibérica, mas os palácios continuaram a ser adornados pelos artesãos mouros, que pelos seus trabalhos minuciosos eram requisitados pela corte.


Um povo que desabrocha em uma “Primavera Árabe”, como aconteceu em 2011, só poderia ser sustentado por uma cultura forte, que demonstra coragem em manter suas tradições com veemência sob os olhares esguios do ocidente. A riqueza desta cultura está em coisas simples, como céu talhado em milhões de estrelas esculpidas nos tetos dos aposentos dos Álcazares, nos jardins que imitam oásis, nas fontes trazidas para dentro dos palácios, ou nas paredes enfeitadas com poemas. 

Caminhar por essas belezas e sua riqueza de detalhes remete a um longo bordado de renda do nordeste brasileiro.Nas manifestações artísticas dos árabes antigos as figuras humanas não são comuns, partindo de uma crença que só Alá poderia criá-las, daí a emoção passada para outras formas que são carregadas de tradição e encanto que transcendem os efeitos insólitos de qualquer religião.


Então, eu vi resquícios de um povo que não estava mais ali, só restavam suas relíquias. Pedaços soltos das suas riquezas e seu declínio. Como nos velhos tempos ando sonhando acordada, agora com o povo de lá e me transporto para os burburinhos das ruas, para bancas repletas de especiarias, meninas com véus, lamentações, sofrimentos em meio a uma beleza escondida. Quem sabe um Mihrab me indica a direção, o caminho, para um dia contar aqui uma história da verdade de lá.

 
O encanto me faz capaz de modificar a epístola de São Paulo aos Corintíos “...quando era menino falava como menino, sentia como menino, discorria como menino. Logo que cheguei a ser homem acabei com as coisas de menino, mas perambulando por entre formas em arabesco voltei a ser menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido....”.   

 
 



Um presente para quem leu minha história: 
Dança moura filmada pelo Eduardo em uma praça de Segóvia-ES. Se olhar com cuidado vai perceber que paira no ar a poeirinha de uma planta que lembra  o "dente-de-leão", que só aumentou o encanto do momento...