terça-feira, 14 de agosto de 2012

São João Marcos-RJ

Cada pessoa reage de uma maneira a uma história. Alguns têm uma percepção primeira, que causa uma emoção imediata, em outros a comoção chega gradativamente, porque o sentimento age de forma dinâmica transformando as pessoas. A história de São João Marcos chegou a mim no final da década de oitenta, claro que impressionou, mas a grande comoção que me causou veio anos mais tarde, quando tive mais informações e percebi que algo mais que as instalações físicas de uma cidade se perdera.

 Ponte do Breves em  São João Marcos

A história desta cidade inicia em meados do século XVIII, primeiro como território de uma fazenda onde foi construída uma capela, depois pela promoção à Freguesia, onde os limites do município foram traçados e ergueu-se uma nova igreja, com entorno que passou a ser povoado e tornou-se o centro da cidade. Em 1811 o povoado se tornou Vila com o nome de São João do Príncipe, em homenagem ao Príncipe regente Dom João VI, depois com a proclamação da República houve interesse na desvinculação do nome da monarquia e enfim, o município de São João Marcos tinha autonomia e prosperava em 1835 com um dos maiores produtores de café da Região do Médio Paraíba.
Foto panorâmica de São João Marcos
 
 Por volta de 1890, com escolas públicas, correios, hospital, clubes e até teatro, a cidade era mais desenvolvida do que hoje são muitas de suas vizinhas. Dizem que a companhia de teatro de João Caetano pode ter se apresentado no teatro Tibiriçá em uma turnê que a trupe fez avançando pela região de Mangaratiba.  Se ainda existisse, São João Marcos poderia se comparar à cidade de Paraty-RJ. A cidade possuía ruas feitas em pedras, conhecidas como pés-de-moleque e suas construções eram todas feitas em estilo colonial.
 
Teatro Tibiriçá
Visando a geração de energia para iluminação pública, residencial e para tração de bondes da cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, foi construída uma moderna usina hidrelétrica no município de Piraí à 44km de São João Marcos. A usina de Fontes foi concluída em janeiro de 1907 e para alimentá-la foi utilizado o Rio Ribeirão das Lajes, que cortava São João Marcos, e que segundo os técnicos da Light, empresa responsável, seria possível a inundação da cidade, para que pudesse encher suas barragens. Por volta de 1909, com o aumento dos alagadiços e a conservação insuficiente da represa, a malária se alastrou causando uma epidemia que levou a resultados alarmantes para a cidade. A cidade sofreu com a evasão dos moradores. Muitas famílias morreram devido a malária.
 Riberão das Lages, nas proximidades das ruínas de São João Marcos

Anos mais tarde a Light argumentou a necessidade urgente de ampliar o abastecimento de água para a capital. Chegou a notícia de que a cidade teria que ser esvaziada, pois as inundações iriam acontecer. Em 1939, na tentativa de preservá-la o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) resolveu tombá-la como patrimônio por representar um "raro exemplo intacto de conjunto de arquitetura colonial", São João Marcos seria então a primeira cidade brasileira tombada pelo patrimônio histórico, mas no ano seguinte o Estadista Getúlio Vargas, numa atitude antidemocrática, decretou o destombamento e as operações continuaram.

  Prefeitura de São João Marcos
A cidade começou a ser desocupada em 1941. A população não teve muita escolha, viu-se obrigada a vender suas propriedades para a Light. Os que persistiram e ficaram, foram massacrados pela malária e perderam tudo. O problema não foi só material: famílias foram separadas, crianças morreram e a história se perdeu, como foi perdida a identidade e a memória das pessoas e do seu lugar. Também fora perdida sua cidadania. 

Bosque em meios as ruínas

A igreja Matriz de estilo barroco, majestosa com seu interior enfeitado a ouro, não pode ser destruída por meios convencionais como as casas, além do mais os operários que trabalharam na demolição se recusaram, por respeito ou superstição, a destruí-la. Então, o Ministério da Guerra foi acionado para dinamitá-la, mas quando chegaram já havia sido implodida por um especialista contratado pela Light. Uma pena, pois as águas jamais a atingiram, hoje, ela estaria lá com toda a majestade que uma edificação desta magnitude possui. Algumas pessoas defendem que o verdadeiro motivo da destruição de São João Marcos, foi o receio de que uma revolta popular revertesse a desapropriação.

 Igreja de São João Marcos 

Detalhe do altar enfeitado a ouro e placa ao lado das ruínas da igreja matriz

 Os ex-moradores da cidade partiram para lugares diferentes. Alguns povoaram uma localidade próxima ao município de Rio Claro, hoje chamada de LÍDICE. Aqui começa o outro ponto dessa história que trago para contar. 

Praça central da pequena Lídice brasileira

Lídice também é o nome de uma pequena cidade a 20km de Praga, capital da antiga Tchecoslováquia, hoje República Tcheca. Em 1942 esta cidade foi totalmente destruída por tropas nazista como retaliação pela morte de um oficial de Hitler. Os homens com mais de 15 anos foram assassinados, as mulheres e crianças foram enviadas para campos de concentração. Estima-se que pelo menos 88 crianças morreram  durante o cerco.

A Lídice tcheca totalmente queimada pelos nazistas (retirado da internet)

Lídice tornou-se um símbolo da crueldade nazista durante a guerra e diversos países batizaram cidades e vilas com o seu nome, em solidariedade para com as vítimas do terrível episódio. Lídice que chegou a ser retirada do mapa pelos nazistas, foi reconstruída em 1949 a 700m do local das ruínas onde hoje encontram-se um museu, monumentos e jardins.

 Memorial para as crianças de Lídice, República Tcheca (retirado da internet)

A Lídice brasileira mantém laços de amizade com a tcheca e realizam projetos culturais conjuntos, como a Festa da Paz no dia 10 de junho que ocorre em ambas cidades. O nome herdado da cidade tcheca não é apenas pela homenagem à tragédia lá ocorrida. Também esse pequeno lugarejo, que hoje pertence a Rio Claro-RJ, teve sua história de morte e destruição. É mais fácil entender o sofrimento do outro quando se tem uma relação de identificação com ele.
 Monumento à fenix que ressurgiu das cinzas em Lídice distrito de Rio Claro-RJ (retirado da internet)
São histórias diferentes entre cidades de países distantes, com culturas distintas, mas que compartilham a mesma dor. A dor de perderem seus moradores, suas memórias, sua identidade e serem completamente destruídas, com crueldade, por estadistas e por motivos políticos. A história de Lídice remete ao mito da fênix que renasce das cinzas, foi assim na República Tcheca, foi assim em São João Marcos, que embora não tenha sido reconstruída buscou no dia-a-dia de seus moradores um jeito de prosseguir com a vida. 

Em 2008 foi criado o parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos. A Light e outros colaboradores são responsáveis pelo parque que possui um área total de 930.000m² incluindo mata e espelho d’água . 

 
 O circuito de visitação conta com 33.000m² e os trabalhos arqueológicos têm como objetivo tornar visível a estrutura básica da cidade. Já na entrada do Parque, no meio da mata atlântica densa, é possível perceber as pedras no caminho que formavam as ruas da cidade. 
Caminho para as ruínas
Observando o entorno, fiquei imaginando as pessoas que andavam por ali, praticando suas atividades diárias, crianças correndo na praça da Matriz, depois, visualizei em pensamento as casas sendo destruídas. Realmente comovente.

Ruínas de São João Marcos

Nas ruínas da igreja Matriz observei que os pedaços das torres, eram lindamente enfeitados com azulejo português de estampas azuis. No pequeno museu que o parque abriga, pode ser assistido um emocinante vídeo com depoimentos de ex-moradores que deixaram a cidade ainda crianças, mas se lembram das casas sendo demolidas. 

Fragmento de uma das torres da Igreja Matriz adornado com azulejo português

Já na área do parque, caminhando ao encontro das ruínas tem um poema que transmite saudade de um tempo...do poeta Fagundes Varela que nasceu em Rio Claro e passava boa parte de seu tempo em São João Marcos. 

 Poema de Fagundes Varela no caminho para as ruínas 


"Onde a infância passei descuidoso

Onde tantos idílios sonhei,
Onde ao som dos pandeiros ruidosos
Tantas danças da roça dancei..."


São muitas as histórias de São João Marcos. História triste, mas que achei demasiada bonita de se saber e propagar. São muitos detalhes, cada um a seu modo, que resolver contar essa história, vai poder introduzir um conto além de aumentar um ponto. Os enfoques serão certamente diferentes. Sobre essa postagem, preparo ainda, uma homenagem a São João Marcos que virá em breve...



Leia também o texto de Rodrigo Machado (2010): São João Marcos: A Primeira Cidade que Fora Tombada e Destombada pelo SPHAN. http://www.webartigos.com/artigos/sao-joao-marcos-a-primeira-cidade-que-fora-tombada-e-destombada-pelo-sphan/45047/#ixzz236VyiDp9

Visite Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos: