quinta-feira, 12 de julho de 2012

Algumas histórias da Serra da Capivara. É um bom começo!


É com muita alegria que começo aqui o desafio de escrever minhas Ideias e Histórias. Já tenho algumas, mas escolhi, não por acaso, escrever sobre minha história no Parque Nacional da Serra da Capivara, no sertão do Piauí.


Em 2011, exausta, à época de entregar e apresentar minha dissertação de mestrado, ainda com os nervos à flor-da-pele, já planejava nossa visita ao sertão. Esse sempre foi o canto do nordeste que desejamos estar e foi embaixo de chuva, com o céu encoberto por nuvens, e recebidos por uma brisa úmida e morna, que chegamos aos Piauí. O sertão nos saudou!
Rodamos quilômetros a fio da cidade de Remanso-BA, em meio à caatinga, com destino a São Raimundo Nonato-PI, por muito tempo na estrada bem castigada, nossa companhia foram cabras, muitas cabras, jumentos e carcarás. Pudemos apreciar como esses animais são resistentes ao clima árido e ao tipo específico de vegetação com poucas folhagens. 


 Estrada de Remanso-BA a São Raimundo Nonato-PI
A caatinga é diferente de tudo o vemos aqui no sudeste. Eu que nasci e vivi tão próxima ao Parque Nacional do Itatiaia, com pico alto e coberto por mata atlântica, linda e verde, pude apreciar outra forma de beleza. As ramagens secas e galhos retorcidos com a tonalidade quase monocromática são de uma delicadeza inusitada. Formam uma paisagem cálida, que ao contrário do que pode parecer, é cheia de vida.
Vegetação de Caatinga, árvores de favelas

São aroeiras, umbuzeiros, caroás, cactos. São plantas xerófitas (do grego xero = seco; philo = amigo) que sobrevivem em ambiente com poucas chuvas e baixa umidade. E espanta quando no meio da paisagem cálida nos deparamos com o juazeiro, uma árvore enorme e linda. Muito comuns são as favelas, um tipo arbusto que no fim do século XIX, tropas do Exército que lutavam na Guerra de Canudos, costumavam usar para montar acampamento recobrindo-as com retalhos de pano. Mais tardes estes arbustos foram trazidos para o Rio e disseminaram onde hoje é o Morro da Previdência.
Os cactos que são tantos e tão lindos, nos remetem a uma paisagem pré-histórica, porque são enormes. São xique-xiques, mandacarus, rabo-de-raposa, coroas-de-frade. O que impressiona, além da beleza, é que com o tempo nublado, pouco antes da chuva, estas plantas começam a esverdear e a florescer, quase que de uma hora para outra. Menos o juazeiro que é sempre verde!
Cacto, rabo-de-raposa
 
Chegamos a São Raimundo Nonato (SRN), na porção sudeste do Estado do Piauí, em um fim de tarde refrescado por uma chuva. A cidade, encravada no sertão, possui cerca de 32 mil habitantes, possui um pequeno centro histórico, um comércio movimentado durante o dia e um trânsito complicado, principalmente pelas muitas motocicletas que circulam indiscriminadamente por qualquer sentido das vias, às vezes com famílias inteiras sobre elas! 
   Igreja matriz de São Raimundo Nonato
SRN tem sua economia baseada nos setores primários da agricultura e pecuária, além do de serviços, que vem crescendo com o turismo. Possui alguns visíveis problemas sociais, como o de saneamento básico, mas tem uma simpatia estampada, nas casinhas, nas pessoas, nos costumes, além de uma infraestrutura para turismo que nos pareceu suficiente.
 Comércio popular de São Raimundo Nonato

Foi muito agradável caminhar pelas ruas do centro à noite, com as pessoas conversando nas calçadas sentadas em cadeiras coloridas, revestidas com plástico em forma de tubinhos, que são comuns desde a Bahia. Pelo centro é possível encontrar frutas da região, farinha de tapioca, cajuína, doces típicos como os de umbu e buriti e outros produtos naturais cultivados por pequenos produtores, mas o tesouro que procurávamos, fica há alguns quilômetros dali... o Parque Nacional da Serra da Capivara. 

 Pedra Furada,  Parque Nacional da Serra da Capivara

O parque possui 1.291,4 km² e é uma pérola encravada na caatinga, com
paisagens de serras, vales e planície, recoberta por esta vegetação e que abriga rica fauna e flora, distribuídas pelos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias.
Concentra o mais importante patrimônio pré-histórico do Brasil, com mais de 1.200 sítios cadastrados com arte rupestre, sob a forma de pinturas ou gravuras. Há também sítios arquelógicos de aldeias e oficinas líticas, onde são comuns as fogueiras fossilizadas que permitem as datações por Carbono 14.
 Vista panorâmica de um ponto no Parque nacional da Serra da Capivara
 Vista panorâmica de um ponto no Parque nacional da Serra da Capivara
Quando pisamos no parque, numa tarde quente de outubro, pudemos apreciar animais de várias espécies circulando livremente por seu habitat natural. A figurinha mais interessante é o mocó, um mamífero muito comum, que vive perambulando por todo canto, inclusive nas tocas com pinturas rupestres. Se a Serra da Capivara recebesse um nome hoje, ela se chamaria com certeza a Serra do Mocó. Eles são tão comuns lá, como um dia, imagino, tenham sido as capivaras.
 Animais livres no Parque
 Espécie de Pica-pau
 As escavações são constantes, e novos sítios continuamente descobertos, dentro e no entorno do parque, apresentam indicações do modo de vida e atividades de povos que habitaram aquela região. Num tempo remoto em que o clima era outro, havia água em abundância, florestas e outras particularidades que já não existem ali, se perderam, como as capivaras que ali provavelmente existiram. No parque, encravados no meio da caatinga, há pontos localizados de mata atlântica remanescentes.




O primeiro passo foi passo foi visitar o Museu do Homem Americano para saber um pouco mais da história e do que veríamos nos sítios. O museu é bonito, moderno, com atividades interativas e expõe exemplares interessantes de esqueletos retirados dos sítios, fogueiras, utensílios como as pedras lascadas e outros achados do parque e imediações. Já havíamos lido a respeito da doutora Niède Guidon e de seu trabalho e luta pelo parque e comunidades vizinhas, mas foi no museu que entramos definitivamente na história dela. Formada em História Natural pela USP, com especialização em arqueologia pré-histórica, doutora pela Sorbonne, a arqueóloga integra desde 1973 a Missão Arqueológica Franco-Brasileira. Atualmente é a Diretora Presidente da FUMHDAM Fundação Museu do Homem Americano. A Fundação é responsável pelo parque, que é extremamente organizado e com infraestrutura. As palavras não conseguem expressar o interessante, belíssimo e respeitoso trabalho de Niède Guidon. 

 Dra. Niède Guidon (foto retirada da internet, site GP1)

 Passeio por uma das tocas
A organização do parque, infraestrutura, cuidado com as animais, o trabalho forte com a comunidade, o convênio com cooperativas que fornecem trabalho, constroem cidadania, agregando valor às coisas do parque, através do turismo, mostra o pilar de sustentabilidade em que as ações são firmadas. Um pouco da história está descrita no livro da escritora e jornalista Solange Bastos: "O Paraíso é no Piauí, a Descoberta da Arqueóloga Niède Guidon".

 Pintura rupestre que se tornou símbolo do Parque, sítio da Pedra Furada
Entre tantas riquezas e belezas da região, as pinturas rupestres sobressaem como uma maravilha a parte. É simplesmente lindo de sentir e delicioso de ver. Os grupos étnicos que viveram na região desenvolveram estilos gráficos característicos que os arqueólogos estudando e pesquisando os mais de mil sítios, só na área do parque, puderam identificar e dividir em tradições. Na serra da capivara foram identificados três tradições de pintura rupestre e duas de gravuras. 

 Passeio por outra toca
A tradição Nordeste é mais comum e se caracteriza por representações de ações cotidianas.  São seis mil anos de tradição Nordeste que atestam danças, caças, relacionamentos sexuais, rituais e outras ações e o mais incrível... são imagens que transmitem idéia de movimento.


 Pintura rupestre que lembra uma cena de beijo

Outra tradição, que aparece há dez mil anos é chamada Agreste, retrata principalmente figuras humanas e algumas vezes de caça, mas sem idéia de movimento. As pinturas da tradição Agreste apareceram entre 10.500 e 6.000 anos e passaram a dominar o grafismo com o desaparecimento dos povos de tradição Nordeste.


A tradição Geométrica é caracterizada por pinturas que representam uma maioria de grafismos puros e algumas outras figuras simples e com formas pouco definidas.
As tradições de gravuras são a Itacoatiaras de Leste e Itacoatiaras de Oeste. As gravuras de Itacoatiaras de Leste são comuns no nordeste brasileiro. Ambas retratam uma indústria lítica importante com componentes feitos de quartzito e sílex. As gravuras da tradição Itacoatiara de Oeste recebeu datações de doze mil anos.

  Silhueta de mico em galhos de favela, durante entardecer no parque

Em 1991 a UNESCO, inscreveu o Parque na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade. pelo seu valor cultural. Em 2002 o parque tornou-se declarado Patrimônio Natural da Humanidade. A luta hoje é para protegê-lo de caçadores e vândalos e mantê-lo com os poucos recursos que conseguem chegar até a Fundação.

Pela minha primeira vez no sertão, na caatinga, pela primeira pintura rupestre, pelo encanto que o sertão causou em mim, pois voltei de lá mais brasileira que nunca! E celebrando a primeira postagem. Um brinde, com cajuína! 

 Cajuína do comércio popular de São Raimundo Nonato


O sertão é do tamanho do mundo...
(Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas)

3 comentários:

  1. Que maravilhosa descrição. O blog está tão gostoso que fez maior a vontade de voltar. O Piauí é aqui! Piauí é nosso, o Parque Nacional da Serra da Capivara é nosso, mas são também do mundo!

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  2. Como guarda-parque e condutor de visitantes neste PARNA Serra da Capivara à mais de 15 anos,não poderia deixar de comentar tão grande beleza que nos proporcionam e com maravilhosas trilhas,sítios arqueológicos fauna muito presente e uma flora que só ela pra nos dizer, vale a pena sua visita.

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