É com muita alegria que começo aqui o desafio de escrever minhas Ideias e Histórias. Já tenho algumas, mas escolhi,
não por acaso, escrever sobre minha história no Parque Nacional da Serra da
Capivara, no sertão do Piauí.
Em 2011, exausta, à época de entregar e apresentar minha dissertação de mestrado, ainda com os nervos à flor-da-pele, já planejava nossa visita ao sertão. Esse sempre foi o canto do nordeste que desejamos estar e foi embaixo de chuva, com o céu encoberto por nuvens, e recebidos por uma brisa úmida e morna, que chegamos aos Piauí. O sertão nos saudou!
Rodamos quilômetros a fio da cidade de Remanso-BA, em
meio à caatinga, com destino a São Raimundo Nonato-PI, por muito tempo na
estrada bem castigada, nossa companhia foram cabras, muitas cabras, jumentos e
carcarás. Pudemos apreciar como esses animais são resistentes ao clima árido e
ao tipo específico de vegetação com poucas folhagens.
Estrada de Remanso-BA a São Raimundo Nonato-PI
A caatinga é diferente de tudo o
vemos aqui no sudeste. Eu que nasci e vivi tão próxima ao Parque Nacional do Itatiaia,
com pico alto e coberto por mata atlântica, linda e verde, pude apreciar outra
forma de beleza. As ramagens secas e galhos retorcidos com a tonalidade quase
monocromática são de uma delicadeza inusitada. Formam uma paisagem cálida, que ao
contrário do que pode parecer, é cheia de vida.
Vegetação de Caatinga, árvores de favelas
São aroeiras, umbuzeiros, caroás, cactos. São plantas xerófitas (do grego xero = seco; philo = amigo) que sobrevivem em ambiente com poucas chuvas e baixa umidade. E espanta quando no meio da paisagem cálida nos deparamos com o juazeiro, uma árvore enorme e linda. Muito comuns são as favelas, um tipo arbusto que no fim do século XIX, tropas do Exército que lutavam na Guerra de Canudos, costumavam usar para montar acampamento recobrindo-as com retalhos de pano. Mais tardes estes arbustos foram trazidos para o Rio e disseminaram onde hoje é o Morro da Previdência.
Os cactos que são tantos e tão lindos, nos remetem a
uma paisagem pré-histórica, porque são enormes. São xique-xiques, mandacarus, rabo-de-raposa,
coroas-de-frade. O que impressiona, além da beleza, é que com o tempo nublado,
pouco antes da chuva, estas plantas começam a esverdear e a florescer, quase
que de uma hora para outra. Menos o juazeiro que é sempre verde!
Cacto, rabo-de-raposa
Chegamos a São Raimundo Nonato (SRN), na porção
sudeste do Estado do Piauí, em um fim de tarde refrescado por uma chuva. A cidade,
encravada no sertão, possui cerca de 32 mil habitantes, possui um pequeno
centro histórico, um comércio movimentado durante o dia e um trânsito
complicado, principalmente pelas muitas motocicletas que circulam
indiscriminadamente por qualquer sentido das vias, às vezes com famílias
inteiras sobre elas!
Igreja matriz de São Raimundo Nonato
SRN tem sua economia baseada nos setores primários da agricultura
e pecuária, além do de serviços, que vem crescendo com o turismo. Possui alguns
visíveis problemas sociais, como o de saneamento básico, mas tem uma simpatia
estampada, nas casinhas, nas pessoas, nos costumes, além de uma infraestrutura para
turismo que nos pareceu suficiente.
Comércio popular de São Raimundo Nonato
Foi muito agradável caminhar pelas ruas do centro à noite, com as pessoas conversando nas calçadas sentadas em cadeiras coloridas, revestidas com plástico em forma de tubinhos, que são comuns desde a Bahia. Pelo centro é possível encontrar frutas da região, farinha de tapioca, cajuína, doces típicos como os de umbu e buriti e outros produtos naturais cultivados por pequenos produtores, mas o tesouro que procurávamos, fica há alguns quilômetros dali... o Parque Nacional da Serra da Capivara.
Pedra Furada, Parque Nacional da Serra da Capivara
O parque possui 1.291,4 km² e é uma pérola encravada na caatinga, com paisagens de serras, vales e planície, recoberta por esta vegetação e que abriga rica fauna e flora, distribuídas pelos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias.
Concentra o mais importante patrimônio pré-histórico
do Brasil, com mais de 1.200 sítios cadastrados com arte rupestre, sob a forma
de pinturas ou gravuras. Há também sítios arquelógicos de aldeias e oficinas
líticas, onde são comuns as fogueiras fossilizadas que permitem as datações por
Carbono 14.
Vista panorâmica de um ponto no Parque nacional da Serra da Capivara
Vista panorâmica de um ponto no Parque nacional da Serra da Capivara
Quando pisamos no parque, numa tarde quente de
outubro, pudemos apreciar animais de várias espécies circulando livremente por seu
habitat natural. A figurinha mais interessante é o mocó, um mamífero muito
comum, que vive perambulando por todo canto, inclusive nas tocas com pinturas
rupestres. Se a Serra da Capivara recebesse um nome hoje, ela se chamaria com
certeza a Serra do Mocó. Eles são tão comuns lá, como um dia, imagino, tenham
sido as capivaras.
Animais livres no Parque
Espécie de Pica-pau
As escavações são constantes, e
novos sítios continuamente descobertos, dentro e no entorno do parque,
apresentam indicações do modo de vida e atividades de povos que habitaram
aquela região. Num tempo remoto em que o clima era outro, havia água em
abundância, florestas e outras particularidades que já não existem ali, se
perderam, como as capivaras que ali provavelmente existiram. No parque,
encravados no meio da caatinga, há pontos localizados de mata atlântica remanescentes.
O primeiro passo foi passo foi visitar o Museu do Homem Americano para saber um
pouco mais da história e do que veríamos nos sítios. O museu é bonito, moderno,
com atividades interativas e expõe exemplares interessantes de esqueletos
retirados dos sítios, fogueiras, utensílios como as pedras lascadas e outros
achados do parque e imediações. Já havíamos lido a respeito da doutora Niède
Guidon e de seu trabalho e luta pelo parque e comunidades vizinhas, mas foi no
museu que entramos definitivamente na história dela. Formada em História Natural pela USP, com especialização
em arqueologia pré-histórica, doutora pela Sorbonne, a
arqueóloga integra desde 1973
a Missão Arqueológica Franco-Brasileira. Atualmente é a Diretora
Presidente da FUMHDAM Fundação Museu do Homem Americano.
A Fundação é responsável pelo parque, que é extremamente organizado e com
infraestrutura. As palavras não conseguem expressar o interessante, belíssimo e
respeitoso trabalho de Niède Guidon.
Dra. Niède
Guidon (foto retirada da internet, site GP1)
Passeio por uma das tocas
A organização do parque, infraestrutura, cuidado
com as animais, o trabalho forte com a comunidade, o convênio com cooperativas
que fornecem trabalho, constroem cidadania, agregando valor às coisas do
parque, através do turismo, mostra o pilar de sustentabilidade em que as ações são
firmadas. Um pouco da história está descrita no livro da escritora e jornalista
Solange Bastos: "O Paraíso é no Piauí, a Descoberta da Arqueóloga Niède
Guidon".
Pintura rupestre que se tornou símbolo do Parque, sítio da Pedra Furada
Entre tantas riquezas e belezas da
região, as pinturas rupestres sobressaem como uma maravilha a parte. É
simplesmente lindo de sentir e delicioso de ver. Os grupos étnicos que viveram
na região desenvolveram estilos gráficos característicos que os arqueólogos
estudando e pesquisando os mais de mil sítios, só na área do parque, puderam
identificar e dividir em tradições. Na serra da capivara foram identificados
três tradições de pintura rupestre e duas de gravuras.
Passeio por outra toca
A tradição Nordeste é mais comum
e se caracteriza por representações de ações cotidianas. São seis mil anos de tradição Nordeste que
atestam danças, caças, relacionamentos sexuais, rituais e outras ações e o mais
incrível... são imagens que transmitem idéia de movimento.
Pintura rupestre que lembra uma cena de beijo
Outra tradição, que aparece há dez mil anos é chamada Agreste, retrata principalmente figuras humanas e algumas vezes de caça, mas sem idéia de movimento. As pinturas da tradição Agreste apareceram entre 10.500 e 6.000 anos e passaram a dominar o grafismo com o desaparecimento dos povos de tradição Nordeste.
A tradição Geométrica é caracterizada por pinturas que representam uma maioria de grafismos puros e algumas outras figuras simples e com formas pouco definidas.
As tradições de gravuras são a Itacoatiaras de
Leste e Itacoatiaras de Oeste. As gravuras de Itacoatiaras de Leste são comuns
no nordeste brasileiro. Ambas retratam uma indústria lítica importante com
componentes feitos de quartzito e sílex. As gravuras da tradição Itacoatiara de
Oeste recebeu datações de doze mil anos.
Silhueta de mico em galhos de favela, durante entardecer no parque
Em 1991 a UNESCO, inscreveu o Parque na lista do Patrimônio Cultural da
Humanidade. pelo seu
valor cultural. Em 2002 o parque tornou-se declarado Patrimônio Natural da
Humanidade. A luta hoje é para protegê-lo de caçadores e vândalos e mantê-lo com os poucos recursos que conseguem chegar até a Fundação.
Pela minha primeira vez no sertão, na caatinga, pela primeira pintura rupestre, pelo encanto que o sertão causou em mim, pois voltei de lá mais brasileira que nunca! E celebrando a primeira postagem. Um brinde, com cajuína!
Cajuína do comércio popular de São Raimundo Nonato
O sertão é do tamanho do
mundo...
(Guimarães
Rosa. Grande Sertão: Veredas)
Que maravilhosa descrição. O blog está tão gostoso que fez maior a vontade de voltar. O Piauí é aqui! Piauí é nosso, o Parque Nacional da Serra da Capivara é nosso, mas são também do mundo!
ResponderExcluirUm paraíso!!!!!
ResponderExcluirComo guarda-parque e condutor de visitantes neste PARNA Serra da Capivara à mais de 15 anos,não poderia deixar de comentar tão grande beleza que nos proporcionam e com maravilhosas trilhas,sítios arqueológicos fauna muito presente e uma flora que só ela pra nos dizer, vale a pena sua visita.
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