terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Pensamentos equatorianos




"Se meu pai fosse um índio, como parecia que era, seria um Inca."

"Um lugar de margaridas sem caule, esparramadas pelo chão."

"Acalma caminhar entre as milhares de valerianas espalhadas pelas montanhas do planalto andino equatorial."

"Eu nunca tinha visto uma planta de valeriana, acalma olhar para as flores pequeninas."

"As llamas são uma mistura de cavalinho com cabra, dóceis e elegantes."

"Os vulcões são tão grandiosos, que cá de baixo achamos que estão encobertos de nuvens. Isso para nós que somos pequeninos, lá em cima estão sempre livres."

"São tão magníficos e onipresente que de todo canto é possível vê-los."

"Só uma fumacinha, só uma roncadinha, só isso que eu desejo, por favor, Mama Tungurahua nos protege."

"As índias carregam tudo nas costas, coisas sem fim, pesadas, e até crianças."

"Mulheres com crianças dormindo nas costas envoltas em panos."

"As crianças trabalham desde pequenas com seus pais, no começo ficam presas no pano nas costas, depois pelo chão."

"Era só ele na imensidão do mar de nuvens, gigante, soberano, maior de todos, grandioso Chimborazo, e eu uma criança que aprendeu a andar de bicicleta."

"Eu era uma criança que ria à toa, ainda mais pequenina perto dele gigantesco e onipresente em todo canto em que eu caminhava no seu pescoço de Lua."

"Esse é o primeiro gelo da minha vida." 

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Fumacinha do frio

 Era inverno e o friozinho matinal dava preguiça de ir à escola. Toooooinnnnn! Tocou o sinal. Já ninguém estava, só o frio. A menina entrou correndo pelo pátio e subiu as escadas com os cachinhos balançando. Parou atrasada no lance da escada para ver da janela a névoa de algodão que pairava no jardim. Foi aí que aconteceu. Com a boca entreaberta soltou, por acaso, o ar da respiração. Para sua surpresa, saiu uma fumacinha branca da boca, mágica. Sob encanto, soltou um riso largo. Nunca mais se esqueceu disso.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Os colares de Marina

Marina, morena, vem vindo em busca da presidência do Brasil, sem se pintar. Uma presença forte, de um corpo que parece frágil, com semblante que remete ao povo das florestas do Norte. São muitas as críticas e considerações sobre o provável comprometimento de seu mandato com posturas defendidas pela congregação evangélica a que pertence, principalmente no que se refere às questões das relações homoafetivas, do aborto e outros tantos temas que nenhum dos candidatos se atreve a abordar. Marina foi fadada ao conservadorismo e ao retrocesso por alguns críticos. Mas a presença de Marina é ainda muito mais inusitada, com seu cabelo sempre preso, com típico penteado em coque da senhorinhas da Assembleia de Deus, revoluciona nos modelitos, descartando os tradicionais terninhos. Apareceu diversas vezes com estampas que lembram a floresta e colares, muitos colares de sementes de açaí, mulungu, licuri, jarina e haste de palmeira pupunha. São colares de todos os jeitos, dona de um estilo próprio, mas com toque das tribos ashaninka e navajos, Marina se enfeita de Amazônia.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A fotografia de Vivian Maier


O olhar pelas lentes da Srta. Vivian Maier é comovente. A precisão com que imortalizou cada uma das cenas das cidades de Chicago e Nova York naqueles anos 50, remonta ao legado e relíquia deixada por uma grande artista. O acervo de Vivian Maier contém milhares de fotografias que trazem para os dias de hoje os encantos de uma época que ficou para trás, de cotidianos esquecidos.  São cenas impressionantes, carregadas de realismo e beleza, impregnadas de pessoas comuns. A principal motivação: o acontecimento. 

Os momentos captados pela babá artista, que viraram fotografias, revelam segundo especialistas, que além de possuir o domínio da técnica, Vivian escolhia meticulosamente o que ia fotografar e o fazia com encanto e frieza. O acervo contém também inúmeros ousados auto-retratos, inclusive da sombra da própria artista, curiosamente nunca mostrados a alguém. Sua obra foi desconhecida durante seu tempo de vida.

Todo o material fotográfico da Srta. Maier foi encontrado por acaso por John Maloof, um historiador e corretor de imóveis de Chicago, que ao descobrir o tesouro que tinha em mãos resolveu explorá-lo. Em 2011, John organizou a primeira exposição individual com as fotografias da Srta. Maier e o reconhecimento foi imediato. Depois foram lançados livros e filmes. Recentemente houve o lançamento no Brasil de "Vivian Maier: Uma Fotógrafa de Rua" [Autêntica, 136 págs., R$ 108], editado por John Maloof, com prefácio de Geoff Dyer.

Em 1958 Vivian Maier passou pelo Brasil em uma viagem de quase três meses pela América do Sul e Central. As fotografias dessa viagem estão sendo analisadas. Entre os registros que fez provavelmente deve ter imortalizado momentos e cenas do Rio, São Paulo e Amazônia por onde passou. No segundo semestre de 2016 seremos contemplados com uma exposição no MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo.

Os filmes especulam a vida solitária da babá e fotógrafa, que não se casou, não teve filhos, sem parentes ou amigos próximos. Viveu como uma sombra, escondida, roubando momentos alheios e imortalizando-os nas fotografias perfeitas. Como disse Geoff Dyer parece algo inglório, talvez cruel, mas Vivian Maier é alguém que só existe nas coisas que viu. Nesta, que parece uma história bonita carregada de tristeza, o consolo nos vem nas palavras da jornalista e roteirista Rose Lichter-Marck quando diz ter a impressão que Vivian Maier "era alguém bastante livre, que gostava de estar à margem, e que viveu a vida que quis viver".

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Eutanásia

(dois irmãos conversam num canto afastado quarto. O pai deitado sobre a cama na outra extremidade)

Paulo: Você conseguiu o medicamento?

Túlio: Um amigo trouxe da Bélgica. Não estou seguro, precisamos conversar.

Paulo: Ele precisa disso, está sofrendo.

Túlio: Tem uma questão ética envolvida. Posso perder meu registro médico.

Paulo: Só nós sabemos disso. Daqui a pouco será um assunto entre mim e você. Pensa que o colocaremos para dormir.

Túlio: Ele nos colocava para dormir, lembra? Cobria um, depois o outro. Não sei se posso fazer isso com ele.

Paulo: Todos deveríamos ter o direito de escolher permanecer vivo ou não em uma condição terminal de grande sofrimento.

Túlio: As Leis existem para serem cumpridas.

Paulo: É claro. Se cada um quiser fazer o melhor para o mundo. Nós vamos fazer o melhor que podemos para nós.

Túlio: É uma questão mais profunda. É como se o estivéssemos privando de seu último suspiro.

Paulo: Você está parecendo a mamãe quando chegava da missa. Cara, você é médico. Sabe que há pouco para escolher.

Túlio: É, talvez eu esteja imerso em tradições conservadoras, sustentadas por pilares religiosos, mesmo sendo médico.

Paulo: Vamos em frente cara.

Pai: hummmm.

(os dois homens caminham em direção a cama e param ao lado do homem deitado)

Paulo: Oi pai, como está se sentindo?

(o pai faz sinal negativo com a cabeça)

(Paulo faz um sinal para Túlio iniciar o procedimento)

(Túlio passa a mão nos cabelos do pai)

Túlio: Pai está respirando melhor hoje?

Paulo: O Túlio vai aplicar a medicação para você se sentir melhor.

(Túlio injeta a agulha)

Túlio: Só uma picadinha. Agora o adesivo para segurar. Pronto.

(Túlio posiciona o frasco do medicamento na seringa)

(Pai com voz baixa, faz esforço para falar)

Pai: Paulo, você poderia ir ver minhas plantas amanhã? Elas estão sem cuidados. Precisa aguá-las. No armário da oficina tem uma lata com adubo. Revigore-as para mim.

(Túlio para o procedimento)

Tulio: Você sempre cuidou muito bem do jardim. Já ouvi dizer que tem gente que nasce com a “mão boa” para plantar.

Pai: Cof, cof, cof.

(Paulo coloca a mão sobre os ombros do pai e olha para Túlio)

Paulo: Calma pai. Fica tranquilo.

Pai: Talvez seja necessário podar a sempre-viva, senão ela morre.

(o pai abre um sorriso)

Pai: Cof, cof, cof.

Túlio: Calma Sr. Sergio. Vamos continuar com essa medicação para você melhorar.

(Túlio retoma o procedimento, apertando a ampola contra a seringa)

 Pai: Túlio?

(Túlio não injeta o líquido da ampola e olha para o pai)

Pai: Esta noite, sonhei com um filme que vi há muito tempo atrás.

Túlio: Qual filme pai?

Pai: Contos da Lua Vaga. É a história de dois oleiros que querem coisas diferentes da vida. E também um filme de mulheres fortes.

(Paulo se emociona e chora. Túlio olha para Paulo)

Túlio: Agora quero assistir, fiquei curioso.

(Túlio larga o medicamento)

Pai: São cenas que parecem quadros, quando olhamos isoladamente.

Paulo: Havia esquecido o quanto você gosta de cinema.

(O pai se emociona)

Paulo: Podemos rever esse filme se você quiser.

Pai: A vida é tão curta para se rever todos os filmes que se quer.

Túlio: Pai você...

(ambos percebem o homem morto e se abraçam)

 

 

Fim

 

 

 

Terceiro dia da Oficina de Roteiro, com Renata Mizrahi, CAL/SESI

Exercício: A quer algo de B. C impede B de dar a A. Resolvido por A ou C. A e B são humanos, C pode ser objeto.