quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Quando Ulisses voltou



Quando Ulisses voltou teve uma surpresa. A precisão náutica deveria o colocar em posição exata, deveria ele aquela altura estar bem próximo à sua terra, mas a ilha não despontava. A ansiedade o consumia, e por dentro ele sentia um fogo ardente, que lhe queimava as vísceras, como se o Deus Hefesto o quisesse punir pela pressa tardia. Já se passavam dezessete anos de sua partida.
A ilha de Ítaca esvaecida no mar Jônico, não era a mesma para Ulisses e ele não a reconhecia. Retornar tinha duas faces, a do querer e a da indecisão, por isso ele não conseguia enxergar, o que não sabia que era. No mar, era um capitão destemido, mas não havia fortaleza para decisões quando as paixões o dominavam. Ele acompanhava, com o olhar no firmamento, uma nuvem ligeira, e seguindo-a encontrou seu pensamento em Circe. Na mesma nuvem que escondia Ítaca, ele repousava a lembrança no amor que durante aquele ano viveu com a bruxa.
Com sua ânsia, também as lembranças da guerra passaram a controlar sua pulsação, durante os dez anos da Batalha de Tróia ele se tornou respeitado por sua força e artimanha. Receava deixar no passado a condecoração da vitória de arrastar Helena de volta, contra a vontade de homens e deuses prepotentes.
A lembrança do grande cavalo o envaidecia, ele, o primeiro a descer e caminhar pelas ruas de Tróia, segurando uma tocha ardente, e conduzindo o exército maltrapilho que se tornaria vitorioso graças a sua astúcia para manipular a credulidade dos troianos. A segurança que Ítaca oferecia, roubava dele a glória de ser um herói, e ele seria apenas uma lenda.
Ulisses avistou os montes azuis no horizonte, e do mar, ficou durante dias observando aquela terra estranha. Era Ítaca. A angústia o castigava mais que o Sol e lembrando dos prazeres do ócio em terras enfeitiçadas, chorou ao se sentir outro. Ulisses não era mais o mesmo. Enquanto esteve na ilha de Ogígia, sentia-se prisioneiro do amor nos braços de Calipso, desejava Ítaca, pensava em Penélope.  Com o olhar em Ítaca, prestes a alcançá-la, ele desejava o mundo, Ogígia, Calipso e o resto.
Olhava sua imagem refletida na água cristalina do mar de Ítaca, e entristecido, pensou em se jogar ao mar, mas foi impedido por um movimento brusco do barco que o lançou ao convés. Naquele momento lembrou-se do canto maravilhoso das sereias que seduziu seus companheiros para a morte. Ele presenciara tempos atrás os horrores da falta de controle próprio e seu estômago reverteu-se em náuseas ao se lembrar dos corpos boiando próximos ao barco, entregues de uma vez por todas ao mar. Ele mesmo se entregaria ao lírico se não estivesse preso ao mastro. Perante os prazeres mortais ele era tão comum quanto seu mais raso marinheiro, mas o amor de Circe o diferenciava dos outros e o salvou. Diante de Ítaca ele lamentou estar vivo sem sua tripulação, em seu pensamento o canto lírico das sereias se confundia com o chiado do mar. No desespero ensurdecedor desejou paz, e neste momento decidiu voltar para Penélope.
Quando Ulisses voltou, Penélope não o podia reconhecer. Faltava nela o brilho que havia deixado anos atrás. Percebeu nela as mãos castigadas, os dedos deformados e a juventude comprometida. O tear foi seu aliado na ansiedade, que ela havia transformado em esperança, e depois, em nostalgia. Ela estava presa na nostalgia da partida de Ulisses e ele teve pena dela. Ulisses voltou para casa.
Quando Ulisses voltou, percebeu que seu grande inimigo sempre esteve muito perto. Tinha que lutar consigo, o que queria encontrar estava dentro de si e precisava ser vencido.
...


...haverá continuação

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A Resistência





Ernesto Sabato: A Resistência  (página 23)




"O destino, como tudo que é humano, não se manifesta em abstrato, mas encarna numa circunstância, num pequeno lugar, num rosto amado ou num nascimento pobre nos confins de um império.
Nem o amor, nem os encontros verdadeiros, nem mesmo os profundos desencontros são obra do acaso, e sim algo que nos está misteriosamente reservado. Quantas vezes na vida me surpreendeu a maneira como, entre multidões de pessoas que existem no mundo, acabamos encontrando aquelas que de algum modo possuíam as tábuas do nosso destino, como se pertencêssemos a uma mesma organização secreta, ou aos capítulos de um livro! Nunca pude saber se reconhecemos essas pessoas porque já as procurávamos, ou as procuramos porque elas já rondavam nosso destino."





A Resistência/ Ernesto Sabato; tradução Sérgio Molina - São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

sábado, 27 de outubro de 2012

Museu do Índio do Maracanã



O casarão que durante a década de 1940 abrigou o museu do índio está em vias de ser destruído pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. O espaço do casarão ampliaria a rota de saída do estádio do Maracanã e a iniciativa faz parte do conjunto obras previstas na reforma para a Copa do Mundo de 2014. Foi anunciado essa semana, que o governo do Estado entregará o Maracanã para concessão a despeito de toda a nossa grana injetada ali. Na certa, a concessionária vencedora tem preocupações maiores do que um velho casarão majestoso, mas caindo aos pedaços. 






O casarão construído em 1862 foi a sede do centro de operações do Projeto Rondon, ali o próprio Marechal recebia os índios que chegavam de toda a parte do país. Pelas ruínas é possível contemplar sua beleza, consta que por isso recebeu um prêmio da Unesco por considerá-lo um dos prédios mais lindos do Rio.
Criado como um revés político ao massacre de índios no início do século XIX, de repercussão internacional negativa, foi durante muito tempo símbolo da luta por melhores condições para esta população. Presenciou importantes acontecimentos, a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois a FUNAI, e foi o palco onde atuaram personalidades como Darcy Ribeiro e outros tantos. Entretanto, o mais comovente é saber que área do imóvel abrigou a tribo Maracanã  e que por isso é considerada um “solo sagrado” pelo povo indígena, conforme relata a jornalista Cecília Costa do Globo (Rio, 20/10/12). Foi a tribo que deu nome ao estádio e ao rio que passa por ali. O prédio do museu acompanhou, sob os olhares dos índios que por ali sempre estiveram, jogos consagrados do estádio do Maracanã.
 Hoje, no museu em ruínas, setenta pessoas, índios de várias etnias, que convivem juntos no local, vão resistir à demolição prevista pelo governo. Os índios estão há seis anos vivendo nas ruínas e a transformaram em um centro cultural. Agora, se impedirem a demolição, vão lutar para transformá-la em um centro turístico.








Este é um alerta para salvar este patrimônio público que carrega registros da nossa história e cultura. Em defesa do prédio do museu e para contribuir com os índios que estão residindo ali, fotografamos e filmamos para divulgação o depoimento do índio Urutau Guajajara, que mostrou o prédio e falou da festa do moqueado, ou festa da menina moça, que é o rito que marca a passagem à puberdade. Eles vão reproduzir o ritual no prédio do museu, pela primeira vez fora da tribo. Será aberto ao público nos dias 27 e 28 de outubro.



por  Regina Fernandes e Eduardo G. M. de Castro 
Fotografias e vídeo: Eduardo G. M. de Castro 


Foto de Daniel Marenco - 16.dez.2013/Folhapress

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Florbela Espanca



Quando cheguei a Évora em Portugal, procurava muitas coisas: Cromeleque dos Almendres, ruínas romanas como o lindo templo de Diana, cidade medieval cercada por muralha, construções mouriscas herdadas dos árabes, vinhos do Alentejo, comidas do lugar, mas confesso que me encantava ir à cidade de Florbela Espanca. Florbela foi uma poetisa portuguesa que nasceu em 1894 em Vila Viçosa, lugarejo pertencente à Évora, uma mulher apaixonada, que buscava um lugar no mundo, pequeno demais para ela. 

  Florbela Espanca

Como bem descrito, “sua vida, de apenas trinta e seis anos, foi plena, embora tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos que ela soube transformar em poesia”. Uma mulher especial que Fernando Pessoa chamou de “alma sonhadora, irmã gêmea da minha...”.


À memória de Florbela Espanca    
(encontrado no espólio de Fernando Pessoa)

Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gêmea da minha!
Tua alma, assim como a minha,
Rasgando as nuvens pairava
Por cima dos outros,
À procura de mundos novos,
Mais belos, mais perfeitos, mais felizes.

Criatura estranha, espírito irriquieto,
Cheio de ansiedade,
Assim como eu criavas mundos novos,
Lindos como os teus sonhos,
E vivias neles, vivias sonhando como eu.
Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gêmea da minha!
Já que em vida não tinhas descanso,
Se existe a paz na sepultura:
A paz seja contigo!

Quando cheguei ao hotel a primeira coisa que fiz foi perguntar ao recepcionista sobre Florbela Espanca. Ele baixou os olhos e disse, “ela se matou,  eu conhecia muito seu primo, que se matou também...”. Fiquei imóvel e sem ação, porque não esperava. Sabia da vida de Florbela, já havia lido muito sobre ela, mas não a procurei por causa do suicídio, mas pela sua obra, aliás, pelo contrário, por sua vida incondicional, por mais curta que tenha sido, por sua “alma de luto sempre incompreendida”.

Eu                
 (Florbela Espanca)

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino, amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!



Em novembro de 2009, eu ouvi o próprio Xangai cantando no Teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro o poema Eu, de Florbela Espanca, que ele musicou. Por muito tempo busquei esta música, mas sem encontrá-la. Esta semana, motivada pelo filme Florbela exibido no Festival Internacional de Cinema do Rio voltei a procurá-la e encontrei esta versão da Banda Sertanília.

Florbela Espanca entrou na minha vida pela primeira vez quando ouvi a música Fumo que é um poema dela musicado pelo Fagner. As diversas faces de Florbela são um pouco de cada mulher, nós todas estamos nela. Sua poesia descreve de algum modo todos os nossos sentimentos, o nosso íntimo, mas de fato, isso fica mais evidenciado nas mulheres profundamente apaixonadas. Não só mulheres, mas qualquer pessoa que vive ou deseja viver e amar intensamente.

Fumo           
(Florbela Espanca)

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outono: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o vosso sonho!  Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...


 
O filme Florbela, com direção de Vicente Alves do Ó, ou a história que ele conta, não se aprofunda ou dá detalhes da vida literária da poetisa, entendo inclusive como equivocada a ideia que passa da boa aceitação de sua obra na época. Também não é exatamente uma biografia completa, mas o enfoque em um determinado momento, uma parte da sua história contada de uma maneira bonita em uma bela fotografia.