Antes que as seis badaladas do relógio anunciassem o dia novo, Joaquim Maria já olhava para o teto esperando o prenúncio de mais um dia de vida. Observava, com a vista preguiçosa, uma fresta de luz no canto esquerdo do telhado. Levantou-se e da sacada contemplou as tonalidades púrpuras que pairavam sobre a baía, anunciando timidamente um dia ensolarado. Sentiu adentrando pelas narinas a brisa ainda fresca da madrugada. O movimento perfeito e labiríntico do ar fresco preenchendo as narinas, a faringe, dilatando os condutos até o pulmão, como uma essência de menta, deu-lhe a certeza de estar vivo.
Utilizou a água do gomil para se lavar e pôs-se elegante, para cumprir
seu ofício de homem das letras, frequentador de bares e recintos refinados da
cidade, como bom aspirante deveria estar preparado para qualquer eventualidade que questionasse
sua posição de membro da nobre sociedade carioca. Sacou
do mogno um terno tão escuro quanto, em uma escolha minuciosa entre os iguais.
Na chapelaria posicionada ao lado da porta, como de costume, deteve-se no
último rito, o momento que antecede a saída é adequado para não esquecer o
chapéu escolhido, apropriado ao tempo e as convenções.
Desceu a estreita escada do velho casarão na Rua dos Andradas e como um
cão que segue determinado e sem destino, seguiu em direção a Avenida Rio
Branco, de certo a opção menos escaldante em meados de janeiro era espreitar um
bonde que o levasse ao centro. Contrariando a racionalidade decidiu pela caminhada
e se rendeu ao desconforto da testa molhada sob o chapéu. Gostava de observar
as pessoas que davam movimento às ruas, roubava delas partes desprezíveis de
seus cotidianos que transformava em histórias meticulosas e divertia seus
companheiros de idéias nos saraus regados a dry martini.
O cotidiano da sociedade conhecia bem, era um bom observador dos ensaios
involuntários que a vida aplicava aos mais variados cidadãos, da côrte às
estivas sujas do cais. A vida era sim ingrata, ele bem sabia disso, mulato que
era, principalmente com os homens pretos que com suas mais desqualificadas
funções mantinham a grande cidade funcionando. Contudo, acreditava que as novas
ideias abolicionistas eram tolices infundamentadas que nada adiantariam aos
pretos pobres que não vivem de vida própria. Sabia que precisariam de muito
mais do que a revolução pretendia oferecer e arriscava os atolar ainda mais na
lama periférica da sociedade. Sobre si pensou, teve sorte, as letras o salvara.
Biblioteca Nacional
Poderia avançar mais rapidamente pela avenida, mas optou por atravessar
a Rua do Ouvidor, nesta sempre havia moças seduzidas por vitrines das
chapelarias elegantes, por outro lado sentia-se ele seduzido pelos olhares
fixos aos chapéus. Sabia apreciar as damas distintas da côrte com firmes penteados
presos por cinamomos e luvas de renda, mas perdia-se profundamente nas
madeixas frouxas de mulheres com olhares sedutoramente determinados. A estas
preferia, via em seus olhares o da própria mãe, que o arrastava pelas mãos por
estas ruas quando menino, e usava de sua sedutora determinação para garantir
seus estudos. Os olhares invadiam sua alma como a onda brava do mar ressacado, que se
lança sobre a areia e invade o passeio público, ao mesmo tempo que agride,
suaviza. Não queria uma mulher para si, pois em seus olhares as tinha todas.
Já dava pelas horas do chá, seu instinto de humano condicionado pelas
essências dos grãos torrados de café, combinados com o aroma de baunilha das
massas, o guiava involuntariamente para a confeitaria, já sabia onde sentaria,
o que beberia, quem encontraria, previa cada acontecimento, da abordagem do
garçom a chegada de cada distinto companheiro, um a um, e conhecia que ao
deitar da noite, como de praxe, a mesa estaria farta em vinho e poesia. Acendeu o cachimbo e inebriado pela fumaça
adocicada observou sua imagem, um tanto disforme no espelho do lugar, pensou na
cidade escaldada pelo verão, que amava e conhecia como ninguém, pensou
nas letras, nos amores, nos infortúnios, na vida que nunca teve.
...
Numa
manhã ensolarada ele a convidou para uma viagem longa a lugares próximos. Que
tal um passeio pelo Centro do Rio? Ela que anda por essas ruas todos os dias
nas idas e vindas do trabalho achou estranho, mas concordou em se aventurar nos
poucos dias de folga que restavam.
Aprenderam
em suas viagens a dismiuçar os detalhes de cidades de outros mares, mas até
então tinham ignorado as relíquias pequenas do Rio de Janeiro, ofuscadas pela imensidão do
mar e de monumentos como o Redentor. Longe, aprenderam que alguns encantos precisam
de olhares que transcendem a visão do cotidiano. Sairam em busca de alguma
coisa do Rio antigo, sem saber exatamente o quê.
Rua do Centro do Rio
Planejaram
um roteiro para circular por alguns prédios e pontos históricos e munidos de máquina
fotográfica, lápis e papel para pequenas anotações seguiram para seu destino. Ao
saírem do metrô, na estação Central, contornaram o Campo de Santana, reduto de
escravos nos séculos XVIII e XIX, e dali, avistaram os primeiros casarões. Naquele
momento sentiram o Sol forte como um portal que os transportou para uma
dimensão secular, estavam enfim, no século XIX.
Casarões próximos ao Castelo
Pararam
na Rua dos Andradas diante do casarão onde morou Machado de Assis e
contemplaram a fachada deteriorada pelo tempo e o descaso. A aba do chapéu
permitia que ela olhasse para cima sem ter a visão embaçada pela claridade, e contemplasse
o casarão como em outra época. Ainda pensavam em visitar outras célebres moradas
e pontos históricos da cidade, tinham portanto, muita caminhada pela frente, mas
antes de sair, ela imaginou o escritor naquela sacada, em uma manhã distante, contemplando
um sol parecido com aquele que a esquentava, e pensando em Helena. Por outros
casarões ladeira acima, ela mesma imaginava Helena, Estela, Virgínia, Maria Capitolina e
outras tantas lindas mulheres que saiam das páginas imortais, em seus trajes elegantes,
para vagar entre uma e outra loja de tecido, armarinhos e admirar fixamente as
vitrines dos chapéus.
Casarões próximo ao Arco dos Teles
Na tarde,
na altura da Rua Sete de Setembro, os dois apreciaram a arquitetura de uma confeitaria
e pararam para um café. A decoração centenária com espelhos emoldurados e chão ladrilhado
dava requinte ao recinto rodeado de mesas, que dada a hora, estavam postas para
o chá. Ela percebeu que cada mesa, umas ocupadas, outras não, tinha gravada na
lateral o nome de uma personalidade, na maioria escritores e poetas, na certa
uma homenagem do lugar aos seus antigos frequentadores. Observando o ambiente e as pessoas
naquele momento prazeroso, chamou-lhe a atenção o senhor que ocupava a mesa
gravada de Machado de Assis, que com ares e trajes diferentes, vestindo um
primoroso chapéu, sacou e acendeu um cachimbo. O aroma adocicado lembrou um
incenso achocolatado, e ela pensou na beleza da cena, nas coincidências da
vida, na nova legislação que proibe o fumo
em lugares públicos.
Escola de Cinema Darcy Ribeiro
...
* Fotos: Centro Velho do Rio (site)
** Prometo em breve inserir fotos minhas.
*** A personagem foi apenas inspirada em Machado de Assis.
*** A personagem foi apenas inspirada em Machado de Assis.
Regina, achei bárbaro! que vocabulário rico!! Vc me transportou para um passado distante, onde os prédios hj velhos eram novos e cheios de histórias para serem vividas. Amei! um bj e continue escrevendo!!
ResponderExcluirQue bom que você gostou! bjs
ExcluirNão me canso de ler essas mémórias machadianas tão bem narradas.
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=jZrQwDf1LzE