quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Rio Antigo


Antes que as seis badaladas do relógio anunciassem o dia novo, Joaquim Maria já olhava para o teto esperando o prenúncio de mais um dia de vida. Observava, com a vista preguiçosa, uma fresta de luz no canto esquerdo do telhado. Levantou-se e da sacada contemplou as tonalidades púrpuras que pairavam sobre a baía, anunciando timidamente um dia ensolarado. Sentiu adentrando pelas narinas a brisa ainda fresca da madrugada. O movimento perfeito e labiríntico do ar fresco preenchendo as narinas, a faringe, dilatando os condutos até o pulmão, como uma essência de menta, deu-lhe a certeza de estar vivo.
Utilizou a água do gomil para se lavar e pôs-se elegante, para cumprir seu ofício de homem das letras, frequentador de bares e recintos refinados da cidade, como bom aspirante deveria estar preparado para qualquer eventualidade que questionasse sua posição de membro da nobre sociedade carioca. Sacou do mogno um terno tão escuro quanto, em uma escolha minuciosa entre os iguais. Na chapelaria posicionada ao lado da porta, como de costume, deteve-se no último rito, o momento que antecede a saída é adequado para não esquecer o chapéu escolhido, apropriado ao tempo e as convenções.
Desceu a estreita escada do velho casarão na Rua dos Andradas e como um cão que segue determinado e sem destino, seguiu em direção a Avenida Rio Branco, de certo a opção menos escaldante em meados de janeiro era espreitar um bonde que o levasse ao centro. Contrariando a racionalidade decidiu pela caminhada e se rendeu ao desconforto da testa molhada sob o chapéu. Gostava de observar as pessoas que davam movimento às ruas, roubava delas partes desprezíveis de seus cotidianos que transformava em histórias meticulosas e divertia seus companheiros de idéias nos saraus regados a dry martini.
O cotidiano da sociedade conhecia bem, era um bom observador dos ensaios involuntários que a vida aplicava aos mais variados cidadãos, da côrte às estivas sujas do cais. A vida era sim ingrata, ele bem sabia disso, mulato que era, principalmente com os homens pretos que com suas mais desqualificadas funções mantinham a grande cidade funcionando. Contudo, acreditava que as novas ideias abolicionistas eram tolices infundamentadas que nada adiantariam aos pretos pobres que não vivem de vida própria. Sabia que precisariam de muito mais do que a revolução pretendia oferecer e arriscava os atolar ainda mais na lama periférica da sociedade. Sobre si pensou, teve sorte, as letras o salvara.

 Biblioteca Nacional
Poderia avançar mais rapidamente pela avenida, mas optou por atravessar a Rua do Ouvidor, nesta sempre havia moças seduzidas por vitrines das chapelarias elegantes, por outro lado sentia-se ele seduzido pelos olhares fixos aos chapéus. Sabia apreciar as damas distintas da côrte com firmes penteados presos por cinamomos e luvas de renda, mas perdia-se profundamente nas madeixas frouxas de mulheres com olhares sedutoramente determinados. A estas preferia, via em seus olhares o da própria mãe, que o arrastava pelas mãos por estas ruas quando menino, e usava de sua sedutora determinação para garantir seus estudos. Os olhares invadiam sua alma como a onda brava do mar ressacado, que se lança sobre a areia e invade o passeio público, ao mesmo tempo que agride, suaviza. Não queria uma mulher para si, pois em seus olhares as tinha todas.
Já dava pelas horas do chá, seu instinto de humano condicionado pelas essências dos grãos torrados de café, combinados com o aroma de baunilha das massas, o guiava involuntariamente para a confeitaria, já sabia onde sentaria, o que beberia, quem encontraria, previa cada acontecimento, da abordagem do garçom a chegada de cada distinto companheiro, um a um, e conhecia que ao deitar da noite, como de praxe, a mesa estaria farta em vinho e poesia.  Acendeu o cachimbo e inebriado pela fumaça adocicada observou sua imagem, um tanto disforme no espelho do lugar, pensou na cidade escaldada pelo verão, que amava e conhecia como ninguém, pensou nas letras, nos amores, nos infortúnios, na vida que nunca teve.


...


Numa manhã ensolarada ele a convidou para uma viagem longa a lugares próximos. Que tal um passeio pelo Centro do Rio? Ela que anda por essas ruas todos os dias nas idas e vindas do trabalho achou estranho, mas concordou em se aventurar nos poucos dias de folga que restavam.
Aprenderam em suas viagens a dismiuçar os detalhes de cidades de outros mares, mas até então tinham ignorado as relíquias pequenas do Rio de Janeiro, ofuscadas pela imensidão do mar e de monumentos como o Redentor. Longe, aprenderam que alguns encantos precisam de olhares que transcendem a visão do cotidiano. Sairam em busca de alguma coisa do Rio antigo, sem saber exatamente o quê. 

 Rua do Centro do Rio

Planejaram um roteiro para circular por alguns prédios e pontos históricos e munidos de máquina fotográfica, lápis e papel para pequenas anotações seguiram para seu destino. Ao saírem do metrô, na estação Central, contornaram o Campo de Santana, reduto de escravos nos séculos XVIII e XIX, e dali, avistaram os primeiros casarões. Naquele momento sentiram o Sol forte como um portal que os transportou para uma dimensão secular, estavam enfim, no século XIX. 

 Casarões próximos ao Castelo
Pararam na Rua dos Andradas diante do casarão onde morou Machado de Assis e contemplaram a fachada deteriorada pelo tempo e o descaso. A aba do chapéu permitia que ela olhasse para cima sem ter a visão embaçada pela claridade, e contemplasse o casarão como em outra época. Ainda pensavam em visitar outras célebres moradas e pontos históricos da cidade, tinham portanto, muita caminhada pela frente, mas antes de sair, ela imaginou o escritor naquela sacada, em uma manhã distante, contemplando um sol parecido com aquele que a esquentava, e pensando em Helena. Por outros casarões ladeira acima, ela mesma imaginava Helena, Estela, Virgínia, Maria Capitolina e outras tantas lindas mulheres que saiam das páginas imortais, em seus trajes elegantes, para vagar entre uma e outra loja de tecido, armarinhos e admirar fixamente as vitrines dos chapéus. 

  Casarões próximo ao Arco dos Teles
Na tarde, na altura da Rua Sete de Setembro, os dois apreciaram a arquitetura de uma confeitaria e pararam para um café. A decoração centenária  com espelhos emoldurados e chão ladrilhado dava requinte ao recinto rodeado de mesas, que dada a hora, estavam postas para o chá. Ela percebeu que cada mesa, umas ocupadas, outras não, tinha gravada na lateral o nome de uma personalidade, na maioria escritores e poetas, na certa uma homenagem do lugar aos seus antigos frequentadores. Observando o ambiente e as pessoas naquele momento prazeroso, chamou-lhe a atenção o senhor que ocupava a mesa gravada de Machado de Assis, que com ares e trajes diferentes, vestindo um primoroso chapéu, sacou e acendeu um cachimbo. O aroma adocicado lembrou um incenso achocolatado, e ela pensou na beleza da cena, nas coincidências da vida,  na nova legislação que proibe o fumo  em lugares públicos.

 Escola de Cinema Darcy Ribeiro
 
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* Fotos: Centro Velho do Rio (site)
** Prometo em breve inserir fotos minhas.
*** A personagem foi apenas inspirada em Machado de Assis.



3 comentários:

  1. Regina, achei bárbaro! que vocabulário rico!! Vc me transportou para um passado distante, onde os prédios hj velhos eram novos e cheios de histórias para serem vividas. Amei! um bj e continue escrevendo!!

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  2. Não me canso de ler essas mémórias machadianas tão bem narradas.
    http://www.youtube.com/watch?v=jZrQwDf1LzE

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